Uma pequena delegação do Cazaquistão levou ao vaticano duas caixas lacradas com cerca de 13 kg de documentos, testemunhos e relatos de milagres para a causa da serva de Deus Gertrude Dtzel, leiga que manteve viva a fé católica por décadas de perseguição soviética. Os materiais, entregues ao Dicastério para as Causas dos Santos na semana passada marcam o início da fase romana da causa da primeira leiga de Ásia central a chegar a Roma.
"Foi uma recepção muito calorosa", disse o bispo auxiliar de Karanga, Cazaquistão, Yevgeny Zincovskiy, que acompanhou o dossiê a Roma como notário do processo diocesano. "Em meio a tantas causas, foi comovente ver como nossa história distante do Cazaquistão foi recebida de braços abertos. A Igreja universal agora acolheu Gertrude - nós a colocamos em suas mãos".
Gertrude Detzel, nascida em 1903 numa família de etnia alemã na região do Cáucaso, na Rússia, foi deportada para o Cazaquistão no regime de Joseph Stalin. Ela suportou campos de trabalhos forçados (envianda para lá por causa de sua etnida), mas seria presa novamente mais tarde por outro motivo: seu zelo missionário na disseminação da fé.
"Mesmo na prisão, ela não conseguia parar de falar sobre Deus" disse o bispo Joseph Werth, que nasceu em Karaganda e conheceu Detzel pessoalmente antes de ser bispo de Novoibirsk, Rússia. "Quando Stalin morreu e chegou a hora de libertar os prisioneiros, os guardas teriam dito: Deixem-na ir primeiro, senão ele converterá todos aqui. Essa foi a impressão que ela deixou. Ela não conseguia deixar de evangelizar".
Depois de cerca de uma década de trabalhos forçados e prisão (com quatro anos numa prisão soviética por sua fé) Detzel se estabeleceu em Karaganda em 1956, atraída pela forte comunidade católica da cidade. "Ela não pensava em ode poderia viver melhor", disse o bispo Adelio Dell'Oro, que supervisinou a fase diocesana de sua causa em Karaganda. "Ela pensava em onde poderia servir, ela queria esta onde houvesse uma comunidade católica.
Mesmo quando criança, a vida de Detzel girava em tordo da fé.Werth disse: "Quando pequena, Gertrude ficou triste por ter nascido menina e não poder se tornar padre. O padre lhe disse: Um dia você entenderá. E, de fato, graças a ela, a chama da fé permaneceu viva nos campos e, mais tarde, em Karaganda".
Já adulta, Detzel, tornou-se catequista e líder entre fiéis, batizando crianças, preparando-as para os sacramento e liderando orações na ausência dos podres. Cada reunião riscos; a descoberta podia significar outra prisão.
"Ela formou toda uma geração de fiéis, não só leigos, mas também padres e consagrados", disse Werth. "Eu mesmo aprendi a fé com ela".
Para Dell'Oro, a história de Detzel traz uma mensagem que vai além do Cazaquistão.
"No regime soviético, as pessoas eram forçadas a viver como se Deus não existisse", disse ele. "Hoje, ninguém nos proíbe de crer, mas muitas vezes vivermos como se Deus não importasse. Gertrude nos lebra que a fé deve voltar a ser o centro da vida, na perseguição ou na liberdade".
O interesse pela santidade de Detzel surgiu pela primeira vez na visida "ad limina" nos bispos da Ásia central a Roma em 2019, quando o papar Francisco os incentivou a preservar a memória daqueles que mantiveram a fé viva "no silêncio e no sofrimento". Sua causa foi aberta em Saratov, Rússia, em janeiro de 2020, sob o bispo Clemens Pickel, e transferida para Karaganda em agosto de 2021, 50 anos depois de sua morte em 1971.
O inquérito diocesano foi concluído no início deste ano depois de coletar depoimentos do Cazaquistão, Rússia e Alemanha.
Muitas testemunhas já eram idosas, o que tornava a coleta de provas confiáveis uma corrida contra o tempo. Mesmo assim, cerca de 25 depoimentos foram registrados - como os de Werth e de vários religiosos e leigos que conheceram Detzel pessoalmente.
Dell'Oro disse que a equipe de pesquisa até teve acesso ao arquivo presidencial em Almaty, Cazaquistão, onde localizou e fotografou o arquivo pessoal de Detzel, confirmando os anos de prisão que ela suportou por sua fé.
"Cada documento parecia uma pequena ressurreição da memória", disse ele. "Era como se a verdade sobre a vida dela finalmente pudesse falar".
Embora não exististissem comunidades religiosas no Cazaquistão na época, Detzel viveu sua vocação como leiga consagrada. Antes de sua deportação, acredita-se que ela tenha feito votos provados, ingressando posteriormente na Ordem Terceira Franciscana sob o comando do bispo serve de Deus Alexander Chira, o bispo clandestino que também foi exilado em Karaganda. Quando seus restos mortais foram exumados, um anel e uma coroa de flores foram encontrados, sinais de uma consagração oculta e de uma vida inteiramente dedicada a Deus como virgem consagrada.
Segundo Werth, Detzel liderava as liturgias da Palavra dominicais quando padres estavam ausentes, proclamando as Escritura, fazendo breves reflexões e preparando crianças e adultos para os sacramentos. Quando os padre podiam passar secretamente, disse Dell'Oro, eles confiavam a ela a Eucaristia para levar a fiéis que não podiam se contatados publicamente.
A casa dela tornou-se um refúgio para os fiéis, um lugar de oração e catequese. Só como leiga ela poderia ter entrado em lares e sustentado famílias na fé, quando padre não podiam.
"Ela não tentou substituir os padres", disse Dell'Oro. "Mas quando eles estavam ausentes, ela fazia o que era necessárrio".
"Gertrude formou consciências", disse Werth. "Ela nos ensinou que a santidade começa com a finalidade nas pequenas coisas, e daí, todo o resto flui".
O fruto espiritual de Detzel continua crescendo na Igreja, entre padres, religiosos e leigos cujas vocações foram moldadas pelo exemplo dela.
Em 22 de dezembro de 1989, a Suprema Corte da República Socialista Soviética do Cazaquistão a reabilitou oficialmente, reconhecendo que ela não havia cometido nenhum crime. Pouco tempo depois, o sistema soviético que tentou silenciar a fé entrou em colapso, e o Cazaquistão declarou sua soberania em 25 de outubro de 1990, momento que passou a ser comemorado anualmente como o Dia da República. Este ano, 2025, marca 35 anos desde essa declaração.
A causa de Detzel está agora em Roma sob a tutela do padre Zdzislaw Kijas, OFM Conv., que orientou causas importantes, como as do cardeal Stefan Wyszynski e da família Ulma.
Reportagem: Alexey Gotovskiy